Brevemente sobre história:
(Que pensam os homens da mulher cabo-verdiana?)
Cabo Verde é um país extremamente católico e conservador. As mulheres cabo verdianas viram a possibilidade de dar voz aos problemas sociais que lidam através da literatura. Ao fazer isso, as autoras passaram a retratar problemas que não afetam apenas as cabo verdianas, mas mulheres ao redor de todo o globo.
E desde então, a identidade feminina passou a ser vista com características masculinas, por assim dizer, uma vez que as mulheres retratadas não viviam em situação de exclusão e estavam incluídas e ativas em todas as camadas da sociedade, com sua importância reconhecida.
A importância da mulher na sociedade cabo verdiana
"Numa sociedade eminentemente agrícola, reconhece-se cada vez mais a importância do trabalho feminino na realização de tarefas como a sementeira, a colheita, o descasque e a transformação do produto, além de recolher água (percorrendo longos trajetos), transportar lenha e cana para o fabrico do grogue, fazer funcionar o fogão de três pedras (gastando muitas horas de seu dia), carregar pedregulhos ou latões de cascalho à cabeça na frente de abertura de estradas. Além de valiosa mão-de-obra nos campos e de cumpridora dos trabalhos domésticos e funções familiares (como mãe e chefe), a mulher é força atuante no resgate e na preservação do patrimônio cultural do Arquipélago."
(ATAS DO COLÓQUIO INTERNACIONAL CABO VERDE E GUINÉ-BISSAU: PERCURSOS DO SABER E DA CIÊNCIA)
" A língua nacional, o crioulo, bem como as práticas e comportamentos são transmitidos pelas mães às crianças. Por via feminina são preservados o artesanato (rendas, bordados, cestos, artefactos de barro), a medicina tradicional (curandeirismo, parteiras, com seu cachimbo, remédios caseiros, rezas e estórias), o fabrico do sabão de purgueira, a culinária com função identitária (confeção dos pratos tradicionais, cachupa, pirão, xerém), e ainda o pilão e a tabanca. A manutenção da tradição oral dos contos fantásticos da boca di tardi, dos coros femininos que atuam nas cerimônias fúnebres e nas guisas (comunicação da morte), da morna, do batuque, das finason e cantigas de trabalho entoados (e muitas vezes compostos) pelas cantadeiras tradicionais consagram, enfim, a mulhercrioula como guardiã da memória e grande transmissora da cultura. A morna tradicional, manifestação musical preservada pela mulher do povo, canta o trabalho na lavoura, a lavagem de roupa, o carregamento de mercadorias; a morna contemporânea, cuja musa é a Cesária Évora dos pés descalços, canta o amor
(crecheu), a saudade, os povos irmãos africanos, o Caminho para S. Tomé"
(ATAS DO COLÓQUIO INTERNACIONAL CABO VERDE E GUINÉ-BISSAU: PERCURSOS DO SABER E DA CIÊNCIA)
Por que pode-se considerar a literatura cabo verdiana feminista?
Desde os primórdios da literatura cabo verdiana, escritores retrataram as relações de gênero, a feminilidade e masculinidades, e o cotidiano feminino sob uma ótica peculiar.
Apesar de mostrar uma significante importância história, a mulher sempre foi excluída de assuntos que não abrangessem o lar, a religião e a família.
Por que pode-se considerar a literatura cabo verdiana feminista?
" Ensinaram-nos que devíamos ser heróis de qualquer coisa. Exigem que façamos permanentemente
exercícios de auto afirmação. Não nos educaram para corajosamente debatermos os nossos medos,
falhas, hesitações, infernos. Apetrecharam-nos com o mito de super-machos e esperam que sejamos
sempre vencedores, fazendo-nos inimigos da própria maneira de estar, escamoteando a verdade,
falseando as fronteiras. E porque somos apenas normais e temos vergonha da nossa normalidade,
passamos o tempo todo a pensar numa roupagem que impressione. E vestimo-nos de atletas,
mascaramo-nos de campeões, para, às escondidas, chorarmos a nossa simplicidade.
(...) Não temos coragem para dizer não sou o melhor e não tenho que o ser, em justificar-me da minha fragilidade. Entrar em competição com as minhas fantasias e as dos outros seria sinal de simples imaturidade e falta de respeito por mim próprio prosseguiste descontraído, quase a rir "
(Dina Salustio, em um ensaio sobre a relação dos sexos e suas funções na sociedade)
(Dina Salústio, Maria Margarida Mascarenhas(à direita), Antónia Gertrudes Pusich, Yolanda Morazzo, Orlanda Amarílis)
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Como pode ser lido aqui, Antónia Gertrudes Pusich foi a autora pioneira da literatura cabo verdiana. Começando por ela e se estendendo por autoras como Maria Helena Spencer, Orlanda Amarílis, Ivone Aída, Maria Margarida Mascarenhas, Fátima Bettencourt, Dina Salústio, Vera Duarte, Ondina Ferreira, assuntos como a restrição da mulher ao lar, o machismo, prostituição, privar vs demonstrar sua sensualidade, patriarcado, pedofilia, maternidade precoce, loucura e mulheres chefes de família foram amplamente retratados.
" Conceição amava o deserto. Buscava sempre as achadas descampadas para brincar. O Mar nunca.
Banhava-se no pó, sentia as pedras e brincava com as nuvens em permanente mutação ao sabor do
vento.(...)
Quando as nuvens açuladas pelo vento doido cabriolavam no céu, projectando sombras velozes,
Conceição corria desafiando as nuvens, desafiando o vento. (...)
Conceição irrompendo naquela paisagem de sol transparente que crestava a pele, as roupas, o lixo... O pó triturado, farinha solta arrastada pelo vento, mascarando as casas e a palha das coberturas. A
poalha nas gentes e nas coisas. A Ilha enfarinhada, crestada como os pães nos cestos de madrugada.
(...) "
(Maria Margarida
Mascarenhas)
A mulheres retratadas sempre contaram histórias vividas, falando desta forma seus protestos, angústias e medos. E sempre se fala da seca, fome, de filhos sem pai, de moças "exploradas", da gravidez precoce. Em suma, é um grito contra o preconceito.
" Quase todos correndo para o Mar. E Conceição sob o sol virada para a Terra. Fincada no chão das
Achadas, decorando as pedras
Sempre pensei escrever a tua história, TOIA, num dia de raiva e nunca num dia de desencanto e
cansaço. Queria atirá-la em forma de grito. (...) Queria que esse GRITO repercutisse para além do
infinito e que encontrasse eco em cada ser universal. (...) queria levantar e gritar de novo a história de outras tantas Toias."
(Maria Margarida Mascarenhas)
A tragédia que muitas mulheres sofrem ao longo de sua vida são retratadas no conto Álcool da noite, de Salústio.
" A noite estava serenamente calma e o calor convidava a estar-se a olhar para as estrelas,
preguiçosamente (...). De lá das bandas do cemitério uma voz canta uma morna. Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de algum bicho em vez de uma garganta humana, por muito
desafinada que fosse. Era de uma mulher, reconheci com mais cuidado. Aliás, eram as vozes de duas
mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a desarmonia, o desleixo transparecido e o
despudor agridem os ouvidos. (...) Vêm-se aproximando. E estão bêbadas. (...) Sinto raiva. Agora possovê-las no arco iluminado pelo candeeiro. Parecem-me jovens. (...)
A noite não tinha mais magia. Acho que nem estrelas. (...) vou pensando, enquanto desço as escadas.
E os passos falam vergonha, humilhação e revolta. E pena "
Cesárea Évora, uma das artistas e mulheres mais importantes de Cabo Verde
Em suma, a história e sociedade de Cabo Verde vêm sido moldadas, transmitidas e renovada através de uma nova visão da mulher, muito em parte vindo de suas autoras ao longo da história. Como visto no vídeo acima, ainda há muito o que mudar em relação a forma como a mulher é tratada e vista na sociedade, e a influência delas vêm aumentando cada vez mais não só no arquipélago, mas no mundo.
Texto por: Suzana Barbosa, 2014. Blog Eu Me Chamo Cabo Verde © todos os direitos reservados, é permitida a divulgação do texto, desde que haja a fonte.
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